2.2: “Interrep Cristão” e a introdução dos religiosos dentro das universidades brasileiras
Hoje vamos falar sobre o aumento da presença das religiões cristãs, especialmente evangélicas, dentro das universidades públicas.
Como eu imagino que todos já estão cientes, semana passada tivemos a tradicional “Taça Universitária de São Carlos” (Tusca): um torneio que atualmente pode ser resumido (no olhar do grande público) como o carnaval universitário. Em razão do meu cargo enquanto jornalista investigativo contratado pelo Jornal do IFBP para pesquisar sobre a vida universitária, fui convidado para ir nesse evento por um dia e reportar o que eu vi. “O problema?”, você pode me perguntar: eu não me lembro de metade das coisas que aconteceram ali! Porém, o leitor já deve estar familiarizado com as dinâmicas tradicionais da Tusca e das notícias falsas que circulam após o evento — como a clássica história dos estudantes que teriam pego esquistossomose após nadar na lama criada por um banheiro químico que quebrou... Arte no seu estado puro.
Entretanto, um dos pontos mais curiosos da noite estava no fato de que, na saída do evento existia um grupo de evangélicos com instrumentos musicais e comida que eles distribuíam aos foliões que saiam exaustos e enlameados (para não mencionar “sob a influência de tóxicos”) do evento. Cantando sobre como Ele nos ama, segurando cartazes com “Deus é fiel!” e oferecendo café quente para os jovens, eu observei essa cena com um maravilhamento que apenas doses elevadas de álcool poderia proporcionar.
Essa missão evangélica de São Carlos está em atividade desde 2010 e todos os anos eles se dirigem até a porta do evento para “demonstrar o amor de Deus através do cuidado”, como afirmam em uma postagem no Instagram. Assim, conversar com eles na saída da festa ou simplesmente aceitar um pedaço de panettone já virou uma tradição da festa. A partir disso, eu não consigo deixar de me perguntar de onde vem o interesse deles pelos jovens universitários — uma classe que já sofre tanto no cotidiano... E esse questionamento se intensificou na manhã de ontem (21) quando começou a circular a notícia de um “interrep” das repúblicas cristãs de Barão Geraldo. É sobre esse curioso fenômeno de penetração dos grupos religiosos (principalmente evangélicos) dentro das universidades que vamos discorrer hoje.
O que sabemos sobre o Interrep Cristão?
Apesar da escassez de informações públicas sobre o mencionado evento, o tema começou a circular no Twitter na manhã do dia 21, enquanto capturas de tela das modalidades e dos participantes se espalhavam, despertando o interesse do público em geral (um reduzido grupo de usuários no Twitter) em buscar mais detalhes, como quais foram as repúblicas participantes e as modalidades necessárias para levar a taça para casa. A partir de investigações nas contas do Instagram das repúblicas participantes, foi constatado que as categorias confirmadas foram basquete e truco, porém não há confirmação se outras modalidades estiveram presentes. Nesse contexto, optei por não entrevistar nenhuma república, pois requereria um nível de paciência que eu não tenho como me dar durante o fim do semestre.
A partir desse ponto, nessa coluna não tenho a intenção de zombar dos participantes do referido evento, uma vez que estavam meramente desfrutando de uma quarta-feira ensolarada — diferentemente de muitos dos indivíduos ressentidos que expressavam suas opiniões sobre o assunto no Twitter. Contudo, não posso deixar de ponderar sobre a expansão dos grupos religiosos no meio acadêmico brasileiro — evidenciado pela existência não somente de repúblicas e pensionatos exclusivamente destinados a tais grupos, mas também por outras dinâmicas sociais dentro dos diferentes campi, como veremos adiante. Este fenômeno, por si só, requer uma análise mais aprofundada.
Religião nos campi
Já não é surpresa para ninguém que os evangélicos estão presentes nos diversos espaços públicos brasileiros. Pensando no contexto da Unicamp, não é de hoje que escutamos o mesmo senhor pregando na saída do RU com seu microfone e vemos grupos de estudos bíblicos e cultos abertos no Ciclo Básico. Entretanto, um outro caso mais chocante me chama a atenção por conta do debate legal envolvido: quando morei em Cascavel-PR, tive contato com as discussões que se sucederam quando grupos religiosos pressionaram a reitoria da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) para a construção de um “Espaço Espiritual” dentro do campus — o qual foi finalizado em 2022. Apesar de não ter recebido verba da universidade para sua construção, essa capela ainda sim está inserida dentro dos limites do campus e foi sede de eventos oficiais organizados pela universidade, como a imagem abaixo veiculada no Instagram da instituição revela.
Como se sabe, a tragédia do voo 2283 vitimou professores, funcionários e egressos dessa universidade no dia 9 de agosto desse ano. Assim, o fato da homenagem oficial para a memória das vítimas ter ocorrido dentro de uma capela, ao invés de um espaço de eventos oficial do campus — como ocorreria em qualquer outra universidade —, nos faz pensar em como as fronteiras entre o público e o privado estão cada dia mais borradas. Lembro o leitor que não estamos falando de uma instituição católica, mas de uma universidade estadual. Desse modo, meu ponto aqui não é julgar o luto de cada aluno, funcionário ou parente presente em tal cerimônia (pois realmente estamos falando de uma tragédia), mas sim criticar a decisão da reitoria de utilizar esse espaço notavelmente confessional para misturar ritos religiosos com atos públicos. Apesar da carga emocional envolvida na tragédia, ainda estamos falando de um evento oficial do campus, convocado pela reitoria, que foi realizado propositalmente dentro de uma capela. Ainda que a liberdade de culto seja um direito garantido pelo artigo 5 da nossa Constituição, a relação entre a geografia do campus com esse espaço evidentemente religioso vai contra o artigo 19 da nossa constituição, o qual garante o aparelho legal do princípio da laicidade:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
Assim, não estamos falando apenas de uma tomada do espaço público por parte dos estudantes para a organização, por exemplo, de um grupo de leitura bíblico — iniciativa de cunho privado que é respaldada pela lei; o que está em questão é o movimento de infiltração dessas instituições religiosas dentro dos espaços públicos. Não é por acaso que hoje temos um grupo político eleito que forma uma autodenominada “bancada evangélica” e que deliberadamente quer introduzir valores religiosos dentro do funcionamento do Estado.
As fileiras da educação
Enquanto conversava com meu amigo Ioséph, um grego evangélico que estuda linguística aqui na Unicamp, sobre os crentes na porta da Tusca, ele estava comentando sobre como essas vertentes protestantes atuam e fazem suas tentativas de conversões a partir de movimentos de “solidariedade”: ou seja, eles se aproximam das pessoas por meio de uma rede de apoio que as enlaça e as insere progressivamente dentro das cerimônias religiosas. Um caso notável dessa atuação está, por exemplo, na conversão da personalidade Andressa Urach em 2015. Após um caso de infecção bacteriana em razão da aplicação de hidrogel nas pernas, a Vice Miss Bumbum precisou ficar internada em uma UTI e relata em seu livro “Morri Para Viver”, de 2015, que chegou a ver a luz de Deus e a viver temporariamente no mundo após a morte enquanto estava em coma, mas foi a ajuda dos pastores da Igreja Universal do Reino de Deus que, por meio de correntes de oração, a teria salvo do estado terminal.
Lendo trechos desse livro que já figura no nosso cânone de obras literárias, apenas gostaria de fazer uma pequena pausa para transcrever um diálogo que não precisa de adjetivos...
Quem são os evangélicos nas universidades?
Agora é preciso trazer alguns dados sobre o perfil dos evangélicos em São Paulo levantados pelo Datafolha: 58% são mulheres; 14% estão na faixa de 16 a 24 anos (o que é o dobro dos católicos do mesmo recorte); 67% se consideram pardos ou negros; apenas 20% possui o ensino superior (abaixo da média do estado, que é de 35%), de modo que a maioria destes (55%) tem apenas o ensino médio. No âmbito econômico: 27% deles são considerados “não PEA” (pessoa economicamente ativa) e 64% possuem renda de até 3 salários mínimos.
Nesse sentido, como demonstram alguns estudos etnográficos recentes, “No vazio deixado pela igreja católica e o Estado, as igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais cresceram e ainda crescem nos subúrbios e comunidades [...]. Carentes de serviços básicos, perspectivas e proteção, os moradores rapidamente se identificam com a doutrina” (Salgado, 2024).
A partir disso, não é surpreendente que, com o sancionamento da política de cotas em 2012 por parte de Dilma Rousseff, os públicos das universidades brasileiras começaram a se diversificar consideravelmente, de modo que esse público religioso, que é numericamente relevante nas comunidades mais vulneráveis do país, também passou a ingressar no ensino superior.
Um estudo feito na UFPR, campus de Curitiba, mostra que apenas 20,52% dos entrevistados se consideram sem religião. Dentre aqueles que se consideram religiosos, notamos como 36% dos evangélicos estão nas licenciaturas (enquanto que 28% estão nos bacharelados). Esse dado é curioso em comparação com os católicos da mesma universidade: 40% destes estão no bacharelado e menos de 20% estão nas licenciaturas. Nesse sentido, seria muito interessante se existissem dados nacionais relacionados a esse recorte de gênero, curso de graduação e identidade religiosa. Porém, com os documentos que temos — como a pesquisa de Ana Maria Freitas Teixeira de 2023 intitulado “Religião, vida universitária e juventude” —, observamos como “as jovens universitárias católicas e evangélicas identificam na formação em saúde e educação, respectivamente, ferramentas que colaboram para fortalecer seus laços com os compromissos religiosos mediados pelo princípio comum de ‘ajudar o próximo’”.
Um movimento que antes era percebido apenas por impressões agora começa a ganhar dados formais que o comprovam: os religiosos estão se direcionando às licenciaturas e aos cursos da área da saúde (notavelmente a psicologia) com objetivos bem definidos: o que na citação de Teixeira aparece como “ajudar o próximo” pode ser lido, a partir da noção de expansionismo desses grupos nas últimas décadas, como “espalhar a palavra”, pois a noção de auxílio, dentro do discurso religioso cristão (e especialmente evangélico), vai muito além da imagem do fazer “fazer o bem sem esperar nada em troca”. No caso da presença desses indivíduos na psicologia, outras questões éticas começam a ser levantadas a partir da propagação de uma vertente chamada “psicologia cristã”.
O governo Lula e a expansão das igrejas
Muito se discute atualmente sobre como possuímos o congresso mais reacionário da nossa história ou como a “bancada da bala” se aproxima da “bancada evangélica” (o que vemos refletido nos dados do Datafolha que demonstram que 28% dos evangélicos apoiam a liberação de armas para porte pessoal); porém, pouco se fala sobre como podemos relacionar o aumento do número de evangélicos com as concessões que o primeiro governo Lula fez em relação à regulamentação dos templos e espaços religiosos no Brasil.
Esse movimento proporcionou uma pseudo-Reforma dentro da estrutura religiosa brasileira, pois os grupos dissidentes conseguiram se separar das grandes matrizes — como a Universal, Renascer, Igreja Mundial do Reino de Deus etc — e formaram igrejas independentes, as quais conseguem mais liberdade para expandir por conta própria, atraindo novos membros a partir da capilarização mencionada anteriormente a partir da afirmação de Salgado.
Desse modo, igrejas mais liberais, por exemplo, conseguiram se separar das megacorporações, como a Universal, e propiciaram seus próprios debates em relação às questões sociais que as tocam mais de perto. Assim, segundo o Datafolha, atualmente 43% dos evangélicos apoiam a adoção de criação por um casal homossexual, 23% já apoiam o fim da criminalização do aborto e 26% apoiam a legalização da união entre pessoas do mesmo sexo — ideias que os pastores dessas megacorporações recusam veementemente.
Até tenho amigos que são!
Meu objetivo com essa coluna foi demonstrar como existe um movimento de aproximação dos grupos cristãos, especialmente evangélicos, em relação ao ensino superior no Brasil. O fato de em 2024 existir um “interrep” das repúblicas cristãs de Barão Geraldo, fazendo frente ao tradicional evento mundano do interreps organizado pela Associação de Repúblicas da Unicamp, seria visto de uma maneira totalmente diferente 10 anos atrás, quando esse público não era tão relevante dentro das universidades públicas. Todavia, com o aumento exponencial da entrada dos evangélicos dentro do espaço do ensino superior — o que pode ser relacionado, por sua vez, com as novas políticas públicas de ingresso —, novas dinâmicas surgem nesse terreno.
Assim, não quero demonizar ou incentivar a perseguição dessas pessoas dentro dos campi — pois até tenho amigos que são! —, mas sim incentivar novos debates sobre como a presença desses novos agentes no tabuleiro político dos campi acarreta na existência de novas dinâmicas sociais, especialmente quando as fronteiras entre o público e o privado começam a se desfazer em razão dos avanços políticos promovidos por esses grupos, como vimos no caso da Unioeste de Cascavel.